NARRATIVA DOS ITINERÁRIOS DE UMA PESQUISAFORMAÇÃO: A JORNADA AMPLIADA NA ESCOLA MUNICIPAL ANTINÉIA SILVEIRA MIRANDA


NARRATIVA DE ITINERARIOS DE INVESTIGACIÓNFORMACIÓN LA JORNADA EXTENDIDA EN LA ESCUELA MUNICIPAL ANTINÉIA SILVEIRA MIRANDA


NARRATIVE OF THE ITINERARIES OF A RESEARCH TRAINING: THE EXTENDED HOURS PROJECT AT THE MUNICIPAL SCHOOL ANTINÉIA SILVEIRA MIRANDA


Dayse Gonçalves FONTENELLE1 Inês Ferreira de Souza BRAGANÇA2


RESUMO: A pesquisaformação apresentada toma como referencial teórico-metodológico a abordagem narrativa (auto)biográfica, e, o foco principal são as experiências de vida e a formação dos sujeitos, entrelaçadas às memórias e a histórias da escola. O objetivo do trabalho é compreender, por meio das narrativas das professoras e diretoras lotadas desde o início do processo de municipalização da escola Municipal Antinéia Silveira Miranda, de que maneira foi construído o projeto de jornada ampliada da primeira escola de 3º e 4º ciclos da Rede Municipal de Educação de Niterói. Outras questões de estudo surgiram a partir desse tema inicial: Quais mediações políticas possibilitaram a implantação do projeto? Como se relacionam as histórias de vida das professoras/diretoras com as memórias da escola? E ainda, como a prática docente contribui para a (trans)formação dos mesmos? O trabalho desenvolvido aponta para a pesquisaformação como uma abordagem potente que valoriza a escuta e dá espaço para que novas versões de si mesmo possam ser construídas em um diálogo entre memórias pessoais e institucionais.


PALAVRAS-CHAVE: Narrativas. Formação. Histórias de vida. Pesquisa (auto)biográfica.


RESUMEN: La investigaciónformación presentada toma el enfoque narrativo (auto)biográfico como un marco teórico y metodológico, y el enfoque principal está en las experiencias de vida y la capacitación de los sujetos, entrelazados con los recuerdos y las historias de la escuela. El objetivo del trabajo es comprender, a través de las narrativas de los maestros y directores llenos desde el comienzo del proceso de municipalización de la escuela municipal Antinéia Silveira Miranda, cómo se construyó el proyecto de jornada extendida de la primera escuela de los ciclos tercero y cuarto de la Red Municipal de Educación de Niterói.


1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – Rio de Janeiro – RJ – Brasil. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Processos Formativos e Desigualdades Sociais da Faculdade de Formação de Professores. Professora de História da Rede Municipal de Niterói e da Rede Estadual do Rio de Janeiro e Pesquisadora do Grupo Polifonia. ORCID: https://orcid.org/ 0000-0001-5113-9596. E-mail: daysefontenelle@gmail.com

2 Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas – SP – Brasil. Professora da Faculdade de Educação da UNICAMP e Docente Colaboradora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Formação de Professores da UERJ. Vice-presidente da Biograph e Coordenadora do Grupo Interinstitucional de Pesquisaformação Polifonia. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4782-1167. E-mail: inesfsb@unicamp.br


Otras preguntas de estudio surgieron de este tema inicial: ¿Qué mediaciones políticas hicieron posible implementar el proyecto? ¿Cómo se relacionan las historias de vida de los maestros/directores con los recuerdos escolares? Y, sin embargo, ¿cómo contribuye la práctica docente a su (trans)formación? El trabajo desarrollado apunta a la investigaciónformación como un enfoque poderoso que valora la escucha y da espacio para que se construyan nuevas versiones de sí mismo en un diálogo entre recuerdos personales e institucionales.


PALABRAS CLAVE: Narrativas. Formación. Historias de vida. Investigación (auto)biográfica.


ABSTRACT: The research training presented takes as theoretical-methodological reference the (auto)biographical approach and focus on life experiences and the formation of subjects, intertwined with memories and stories of the school. The purpose of this article is to understand, through the narratives of teachers and principals involved since the beginning of the municipalization process of the Municipal School Antinéia Silveira Miranda, how the extended hours project of the first middle school of the Municipal Education System of Niterói was created. Other study questions emerged from this initial theme: What political mediations made it possible to implement the project? How does the life story of teachers / principals relate to the memories of the school? As well as, how does teaching practice contribute to the (trans)formation of teachers? The project chooses the research training as a powerful approach that values listening and makes room for new versions of itself to be created in a dialogue between personal and institutional memories.


KEYWORDS: Narratives. Formation. Life stories. (Auto)biographical research.


Sobre a pesquisaformação narrativa (auto)biográfica e modos outros de escrita acadêmica


A pesquisa narrativa (auto)biográfica nos desafia na construção de outras formas de conhecimento científico. Nessa direção, o Grupo3 Interinstitucional de Pesquisaformação Polifonia, vinculado à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e à Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ)4 vem trabalhando dispositivos de escrita de si, articulados às dinâmicas de pesquisa e de formação. Na experiência do Grupo, o foco dos trabalhos acadêmicos deixa de se colocar no resultado e se revela no processo intensamente vivido e, assim, a pesquisa transborda para



3 O trabalho do referido grupo de pesquisa contou com financiamentos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), de 2010 a 2017, e atualmente com Auxílio à Pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

4 O trabalho do referido grupo de pesquisa contou com financiamentos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), de 2010 a 2017, e atualmente com Auxílio à Pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).


pesquisaformação pelos afetamentos que a reflexão (auto)biográfica produz em todos os envolvidos.

O presente artigo tem como objetivo a partilha dos itinerários de uma pesquisaformação desenvolvida pela primeira autora, dando a ver alguns caminhos e dispositivos que têm nos acompanhado o referido Grupo, especialmente, a escrita de memorias de formação em que nos colocamos como sujeitos de muitas histórias e enredamentos com a pesquisa, bem como o trabalho desenvolvido com as fontes e a escrita narrativa como modo de tessitura da pesquisa. Os textos das pesquisas desenvolvidas caminham, assim, para modos outros de escrita acadêmica incorporando imagens, vídeos, registros narrativos que não “cabem” em normas técnicas (CALLAI; RIBETTO, 2016). Uma pesquisaformação que não abre mão da rigorosidade metódica, da consistência, mas que segue (re)inventando modos de viver, narrar, pesquisar e formar. Nesse movimento, temos também o desafio da linguagem que fala dessa construção de conhecimentos, muitas vezes recorremos a termos que nos “traem” por virem marcados por uma tradição de pesquisa canônica que não descartamos, mas que seguimos (re)construindo. E a cada trabalho vamos produzindo, também, uma linguagem e termos outros

para dizer e modos de organizar a pesquisa.


Como já afirmei, sou bastante inquieta. Escrever um trabalho acadêmico empregando os moldes estabelecidos, não me representava. Por isso, instigada por uma das componentes da minha banca, professora Anelice Ribetto, dividi o meu trabalho em cacos, ou melhor, usei a imagem de cacos inspirada em algumas fotos de uma viagem inesquecível, na qual visitei o Park Guell, em Barcelona. O parque é uma obra de arte arquitetônica a céu aberto, do artista catalão Antonio Gaudi. Entrar em contato com a arte produzida por Gaudi me causou estranhamento, surpresa e encantamento. Ao longe vemos um todo de formas surpreendentes, inusitadas, de cores fortes e vibrantes. Ao nos aproximarmos, voltando o olhar de forma mais atenta e minuciosa, podemos observar que as formas e as cores são, na verdade, o resultado da reunião de uma infinidade de pequenos pedaços de cerâmica. O formato, o tamanho e as cores de cada caco são desiguais. De perto, temos a impressão de que nada combina ou se soma, mas o efeito produzido por cada pedaço encaixado e assentado é tão harmônico, quando olhamos com certa distância, que guardamos na memória apenas o todo. Faço no meu texto, algo que pretende assemelhar ao trabalho do artista, tento reunir os cacos das leituras realizadas no grupo de pesquisa, nas reuniões de orientação e nas disciplinas cursadas, fui pouco a pouco esboçando um desenho da trilha percorrida. Optei por privilegiar as narrativas dos docentes como elementos norteadores da pesquisa. A intenção foi valorizar o saber produzido por esses praticantes, destacando o meu envolvimento como parte integrante do processo. Apontar a importância de estar produzindo um trabalho acadêmico “com” e não “sobre” a escola. Uma escola construída através da experiência cotidiana adquirida por seus praticantes dentro do ambiente escolar e fora dele (FERRAÇO, 2013) (FONTENELLE, 2018, p. 47).


Na tentativa de romper com a linearidade dos capítulos, o texto da pesquisa de Fontenelle (2018) que, aqui apresentamos, foi compondo um mosaico com “cacos” entre narrativas da pesquisadora, das professoras, reflexões teóricas e conceituais, em imagens de uma pesquisaformação que aspira ao inacabamento, à complexidade, ao vir a ser. Todos os cacos ganharam títulos com ações no gerúndio como uma forma demonstrar que a construção da pesquisa é resultado de um processo contínuo que vai acontecendo no caminho.

Assim, os escritos da pesquisa são eles próprios narrativos. Nesse sentido, destacamos a presença do diário de itinerância (BARBIER, 2002) que incluindo uma linguagem clínica, filosófica e poética contam a história da pesquisaformação em andamento. As/os pesquisadores/as do Grupo Polifonia são, assim, convidados a escrever sobre suas pesquisa ao longo de todo processo, uma escrita rascunho que vai sendo comentada nos encontros de orientação coletiva e elaborada ao longo do processo.

Também temos feito uso “as(os) professoras(es)” como forma de demarcar a predominância do gênero feminino na área da educação. Ao longo do presente artigo foi usado o pronome pessoal no feminino para falar das narradoras, afinal as participantes eram em sua totalidade do sexo feminino, não cabendo generalizar usando o sexo masculino.

A pesquisadora trouxe um pouco da escola para o texto, sua humanidade e movimento. Assim, foi colocada uma marca d’água com uma imagem em forma de mosaico com as letras iniciais do nome da escola, cada letra era composta por várias fotos tiradas ao longo dos anos em atividades desenvolvidas por toda a equipe com os estudantes.


Considerei que todo o trabalho desenvolvido pela equipe da escola tinha um destinatário: os estudantes, nada mais justo do que tê-los presentes. Aliás, ao final da defesa apresentei um vídeo com fotos de várias atividades realizadas ao longo dos anos para que todos pudessem visualizar, entender e participar, mesmo que por poucos minutos, do que fazemos na escola (FONTENELLE, 2018, p. 31).


Figura 1


Fonte: Arquivo pessoal das autoras


As imagens aparecem como forma de narrar as reflexões desenvolvidas ao longo do texto escrito. Nem a fala das participantes, nem as imagens pretendem assumir um caráter meramente ilustrativo. Fala, imagem e texto se entrelaçam estabelecendo uma relação indissociável entre a forma e o conteúdo, que se inscreve como uma pesquisaformação narrativa (auto)biográfica.

Partilha. Palavra que marca os sentidos desse texto, porque nos mobiliza e esclarece a intencionalidades dos caminhos aqui trilhados: partilhar com os leitores o processo de escrita da pesquisaformação, suas dificuldades, as discussões teóricas e metodológicas presentes e a sua estética. A motivação, a intenção fazem muita diferença na forma e nas opções de uma escrita acadêmica. Buscamos, assim, partilhar e dar a ver caminhos de uma professora da educação básica como pesquisadora do seu fazer cotidiano, narradora da sua experiência no contexto escolar. A intenção subterrânea é encorajar, inspirar e estimular àquelas e àqueles que trabalham na sala de aula e fazem muito, a registrar suas experiências para que estas sejam uma fonte de troca com outras(os) professoras(es).

Damos continuidade a essa partilha pelos “fragmentos (auto)biográficos” que trazem

lampejos do memorial de formação da primeira autora e, a seguir, alguns cacos...


Fragmentos (auto)biográficos


Começo, então, trazendo fragmentos (auto)biográficos para que possam identificar o lugar de onde vêm minhas ideias, valores, identificações e dúvidas. Sou uma professora regente


graduada em história, que apesar de já ter trabalhado na gestão educacional de dois municípios do estado Rio de Janeiro, nunca saiu da sala de aula5. Posso me apresentar também, como uma pessoa que sofre de um mal denominado “inquietude fundamental” em todos os aspectos da vida. Explico: gosto de mudar, de fazer diferente, de buscar fazer melhor. Foi exatamente por isso, que iniciei a minha dissertação buscando me apresentar como alguém que está sendo, e não alguém que é, completa, terminada e fixa (HALL, 2015; VIEIRA, 2000). Alguém em constante aprendizado. A busca por conhecimento, por melhores caminhos, por aprimorar o meu fazer fizeram com que planos e projetos fossem inúmera vezes refeitos ou recomeçados. Nem sempre o resultado final foi o idealizado inicialmente. É bem verdade que algumas vezes superou a expectativa, em outras trouxe frustrações. Com base nesse movimento de idas e vindas, um vocabulário composto por palavras como “construindo”, “reconstruindo”, “trocando”, “aprendendo”, “persistindo” foi orientando minhas experiências e me trouxe até aqui. As experiências ao longo da vida foram muitas e fecundas. Muitas me trespassaram e, assim, me tocaram profundamente, causando um efeito formador e transformador na pessoa e profissional (LAROSSA, 2016).

Dito isso, apresento a vocês uma parte de minha trajetória, para dar sentido as escolhas feitas até aqui. Entendo por narrar as experiências vividas, não como uma forma de reconstituir o curso factual e objetivo do que foi vivido e, sim, um ato de passagem, pelo qual aquele que narra a sua história de vida retoma em acordo com as associações que faz com o espaço e o tempo de sua existência. O sujeito que narra sua história de vida, buscando significar e dar sentido à sua trajetória, seleciona ínfimas partículas do que viveu e reconstrói a história de si mesmo. É, portanto, uma enunciação instável e transitória, que se reconstrói e não acaba em sim mesma. A sua importância está na noção de conveniência que a história toma no momento da enunciação (DELORY-MOMBERGER, 2006). Assim posto, digo que optei por cursar história como uma forma de transgredir e de aprofundar meus conhecimentos. Era um momento especial da História do país, tempos de abertura política, quando o conhecimento da História ganhou enorme projeção e um charme peculiarmente transgressor. Ressalto que alguns professores e o meu pai, principalmente, tentaram me convencer a escolher outro curso. Diziam que seria somente professora. Mas eu estava decidida. Era o curso de História a minha escolha. Logo no primeiro semestre da licenciatura, tomei outra decisão que causou ainda mais estranheza no âmbito familiar: resolvi fazer o Curso Normal oferecido no Instituto de Educação



5 Trabalhei de 2011 a 2013 na Fundação Municipal de Educação de Niterói (FME) e, no 2º semestre de 2014, na Secretaria Municipal de Educação de São Gonçalo (SEMED).


Professor Ismael Coutinho (IEPIC), em Niterói, Rio de Janeiro. Tomei essa decisão diante da percepção de que a graduação estava mais voltada para o bacharelado, enquanto que eu ansiava por uma formação capaz de dar conta da realidade da sala da aula. Sentia necessidade de me preparar para a docência, de adquirir prática, aproximando-me da realidade da escola.

As disciplinas do curso normal e os estágios foram um mergulho na realidade da escola pública. Fiz estágios no próprio IEPIC e no Colégio Estadual Professor Manuel de Abreu (CEPMA). Estar envolvida no cotidiano escolar, viver a escola em seu dinamismo me empolgou bastante.

Na universidade, após terminar o curso normal, fui bolsista de iniciação científica. O contato com documentos de outro tempo me fascinou bastante. Talvez venha desse encontro o estímulo de pesquisar, de me tornar uma professora pesquisadora.

Fiz dois concursos para ingressar na rede pública. Trabalhei em duas escolas de redes diferentes no mesmo bairro durante anos. Estar em sala de aula é sempre um aprendizado. Falar e ouvir, fazer e refazer, são ações que exigem abertura para o novo.

A chegada a Escola Municipal Antinéia Silveira Miranda, a primeira escola de 3º e 4º ciclos de horário integral da rede Municipal de Niterói, ocorreu após a saída da Coordenação da Disciplina de História na rede Municipal de Niterói. Uma escola nova é sempre um terreno fértil para muitas possibilidades. Fui para lá com essa intenção: fazer diferente, fazer melhor. Encontrei a equipe da direção composta por profissionais muito competentes, engajados e comprometidos, que apoiaram os professores em todos os aspectos. Semanalmente, nas reuniões de planejamento forjávamos combinados que eram renovados e ajustados sempre que necessário.

Diante de uma experiência repleta de significados e muito incentivada por amigos, pela direção da escola decidi ingressar no mestrado para narrar o que estava vivendo: a municipalização de uma escola em tempo integral, os movimentos de construção de sua identidade e o significado para alguns professores envolvidos nesse processo. Cursar o mestrado e a participação no Grupo Interinstitucional de Pesquisaformação Polifonia - foram experiências inspiradoras. As leituras realizadas trouxeram identificação com o tipo de escrita que gostaria de apresentar na minha dissertação. A dissertação empregou referenciais teóricos que se articulam. O primeiro se inscreve no campo da pesquisa qualitativa na qual a preocupação com o aprofundamento da compreensão do grupo a ser pesquisado foi o principal objetivo, respeitando a singularidade das narrativas que possibilitam a compreensão do contexto social mais amplo, no qual estão inseridas (GOLDENBERG, 2004). O segundo é o da


pesquisaformação6, na qual trabalhei com o entendimento que a narrativa das experiências vividas podem produzir um efeito formativo naquele que enuncia o discurso (BRAGANÇA, 2018; DELORY-MOMBERGER, 2012).

Além da realização pessoal, o meu ingresso no mestrado inspirou outros colegas da escola a seguirem no mesmo rumo. No ano seguinte a minha entrada no curso, outras três colegas de trabalho ingressaram também no mestrado. Elas escreveram sobre o próprio trabalho na escola onde trabalhamos, reforçando o entendimento que a professora é também uma pesquisadora.

Nos fragmentos do memorial de formação, percebemos movimentos instituintes que se afirmam quando a pesquisadora diz de si. Nos assumimos como sujeitos que pesquisam, constroem conhecimento e se formam com outros sujeitos, assim, produzimos uma tessitura de intriga (RICOEUR, 1994) com nossos itinerários fazendo, emergir histórias, campos problemáticos e questões que permeiam nossas pesquisas. Pessoas, acontecimentos, lugares compõem um enredo não cronológico que dão a ver o singular-plural, em entrelaçamentos pessoais, acadêmicos e profissionais.


Contando um pouco da história... primeiro caco


A pesquisa aqui apresentada buscou ressignificar a escola como um espaço de produção de saberes. E, principalmente, o/a professor/a como um produtor de conhecimento sobre a sua prática. Para tanto, reiterar a centralidade do/a professor/a como sujeito de sua formação é essencial. Como nos afirma Nóvoa (1992), “o professor é a pessoa. E uma parte importante da pessoa é o professor”, por isso é fundamental encontrar um espaço dialógico entre as dimensões do pessoal e do profissional para que os professores possam se apropriar de seus processos de formação, dando a eles real sentido.


Devolver à experiência o lugar que merece na aprendizagem dos conhecimentos necessários à existência (pessoal, social e profissional) passa pela constatação de que o sujeito constrói o seu saber ativamente ao longo do percurso da vida. Ninguém se contenta em receber o saber, como se ele fosse trazido do exterior pelos que detêm os seus segredos formais. A noção de experiência mobiliza uma pedagogia interativa e dialógica (DOMINICÉ, 1990, p.149-150).



6 Na perspectiva teórico-metodológica do Grupo Polifonia, na esteira de aprendizagem com a Professora Nilda Alves (2007), optamos pela junção de algumas palavras que transbordam em um excesso de sentidos e que se expressam em uma indissociabilidade complexa.


Partindo desse pressuposto, foi intenção da pesquisa desenvolvida contextualizar o processo de constituição da primeira escola de 3º e 4º Ciclos funcionando com horário ampliado da Rede Municipal de Niterói, bem como a forma como esse processo implicou movimentos de (trans)formação dos docentes envolvidos. Para compreender tal processo, foram consideradas as narrativas das professoras e diretoras que atuam na escola desde o início de seu funcionamento.

Também foram partes importantes da pesquisa as possíveis histórias da (trans)formação das professoras que estiveram presentes desde o início do funcionamento como escola Municipal para, assim, visibilizar de que forma foi construída a relação entre as professoras e os estudantes, entre as professoras e as responsáveis pela direção da escola, entre a escola como um todo e os responsáveis pelos alunos. Apresentar o que aconteceu a cada um dos envolvidos durante a experiência da municipalização e da interação com todos os participantes no processo é uma forma de refletir sobre o ocorrido, elaborando sentidos, ou a ausência deles (LARROSA, 2016).

A Escola Municipal Antinéia Silveira Miranda foi municipalizada em janeiro de 2014, tendo, inicialmente, uma gestão compartilhada com a Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Três meses após a municipalização, a escola passou a ser gerida inteiramente pela equipe nomeada para esse fim, pela Secretaria Municipal de Educação (SME) e pela Fundação Municipal de Educação (FME).

O prédio, um antigo Centro Integrado de Educação Pública (CIEP), estava completamente deteriorado. A relação entre a escola e a comunidade havia se esgarçado bastante e isso podia ser observado através do quantitativo de alunos que a escola possuía no momento da municipalização7.

Enquanto estava sob a gestão da Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC), o CIEP possuía turmas de 1º ao 5º ano e funcionava das 8 horas às 14 horas. A escola foi deixando de abrir novas turmas e, paulatinamente, mesmo as turmas existentes foram perdendo alunos; por conta do número reduzido de turmas, a escola foi perdendo professoras(es) e, consequentemente, verbas8. Segundo Maurício (2009), o projeto original do CIEP foi pouco a pouco descaracterizado, desagradando aos pais/responsáveis, o que resultou em um alto índice de evasão.


7 A escola possuía aproximadamente 45 alunos quando foi municipalizada.

8 O Estado do Rio de Janeiro, desde o início dos anos 2000, vem deixando de abrir turmas do Ensino Fundamental

1. Essa decisão fez com que as unidades escolares que possuíam turmas do Ensino Fundamental 1 perdessem progressivamente investimentos.


A pessoa designada para a direção pela SME/FME foi a pedagoga da Rede Municipal, Thaís Esteves9, que, imediatamente após a nomeação, deu início à montagem de uma equipe e de um projeto para o funcionamento da escola. Muitos componentes do grupo eram colegas de trabalho da FME, que foram atraídos pela possibilidade de fazer um trabalho mais dinâmico e diferenciado. E, para compor toda equipe, ainda foram necessários os contratos temporários, já que não existiam profissionais disponíveis na rede para todas as áreas de atuação.

Durante o processo de municipalização, ocorreram reuniões entre a SME/FME e SEEDUC, entre a FME/SME com representantes da comunidade do Caramujo para que fossem estabelecidas as bases para o funcionamento da escola. Entre outros pedidos, a comunidade solicitou às autoridades municipais presentes, a permanência da jornada ampliada.

As aulas tiveram o seu início em março, diferente das outras escolas da rede, para que houvesse tempo de preparar o espaço físico e de reunir todos os profissionais necessários para uma escola com grupos de referência de 5º, 6º e 7º anos de escolaridade.

Desde o primeiro momento, o Projeto CLIN Social10, que funciona na comunidade do Caramujo como uma compensação pelo fato de existir naquele bairro um aterro sanitário, esteve presente como parte integrante da grade de horários elaborada pela equipe técnica da escola. Era uma parceria que ocorria, inclusive, na utilização do espaço físico: a escola utilizava as salas do segundo andar do prédio e o projeto CLIN Social ocupava as salas do terceiro andar.


Uma das parcerias foi com o Projeto CLIN Social, que atendia algumas escolas da rede. E, por conta de política, eles ficaram sem espaço para trabalhar. Eles atendiam sempre em clube. Era uma atividade direcionada à escola no contraturno. Tinham atividades pedagógicas, mais outras esportivas. E aí, em 2014, quando viemos para cá [...], o terceiro andar estava ocioso (...). A Thaís ofereceu para eles (...) o espaço, a escola emprestou. A gente não usava mesmo. E eles ficaram aqui atendendo os alunos da José de Anchieta. Só que de manhã, eles atendiam pouquíssimas crianças (...). Aí, com o passar do tempo e tal, eles falaram “Poxa, a gente já está aqui. A gente poderia atender aos seus alunos, também”. E aí a gente montou um horário (...) (Lúcia – Diretora Adjunta).


A matriz de horários foi elaborada, intercalando aulas do Referencial Curricular da Rede Municipal com as aulas do projeto, perfazendo um total de 7 horas de permanência do aluno na escola, excetuando as quartas-feiras, de 10 horas às 12 horas, quando ocorria – e ainda ocorre


9 Thaís Ribeiro dos Santos Esteves é pedagoga da Rede Municipal de Niterói. Foi Coordenadora da Equipe de Articulação Pedagógica de 2006 até 2012 e atuou na Gestão escolar como coordenadora do polo 3, no ano de 2013.

10 Este projeto atendia originalmente apenas à Escola Municipal José de Anchieta, também localizada no Caramujo, especificamente, na localidade Morro do Céu. Até 2014, o projeto funcionava na Associação Atlética do Banco do Brasil, mas, por problemas na renovação do contrato, o projeto passou a funcionar no segundo andar da E. M. Antinéia Silveira Miranda, atendendo também à E.M. José de Anchieta.


– o horário de planejamento coletivo, com a presença da equipe técnica, dos professores da unidade escolar e dos professores do Projeto CLIN Social.

No início das aulas, em março/2014, tínhamos apenas 89 alunos, divididos em um grupo de referência do 5º ano, dois grupos de referência do 6º ano e um grupo de referência do 7° ano. Os alunos do 5º ano eram de escolas dos arredores. Poucos fora da faixa etária adequada.

Mas os alunos do 3º e 4º ciclos, a maior parte deles remanescentes da rede estadual, estavam fora da faixa etária considerada adequada ao ano escolaridade. Existia entre eles uma hostilidade exacerbada e uma mal disfarçada resistência à nova gestão da escola. Nas reuniões de planejamento das quartas-feiras, em grupo, buscávamos formas de romper com as resistências.

É preciso deixar claro que foram poucas as interferências da SME/FME. A preocupação com dados, gastos e controle sempre existiu. Mas talvez por não ter o grupo gestor da SME/FME definição clara da política educacional dirigida à rede, não impuseram à escola uma proposta a ser desenvolvida. Coube à direção e aos professores encontrar, de forma criativa, o tom da organização e do funcionamento da escola para que ela se tornasse um espaço de jornada ampliada. Houve, portanto, liberdade de criação de uma proposta própria de atuação. O currículo foi paulatinamente sendo gestado pelos praticantes, entendendo a teoria e a prática como elementos indissociáveis e complementares (OLIVEIRA, 2012).


E o interessante é que é construído pela escola mesmo, não é só construído pela direção, pela pedagoga... não, pela escola. E cada vez que a gente vai para uma reunião de planejamento, um professor vem, "Ah, mas tem necessidade de reforço disso", então a gente não tem os alunos fugindo porque não é no contraturno. Então, com isso, você já amplia mais um tempo de aula para um grupo de alunos, entendeu? Aí os professores, "Ah, poxa, mas a gente poderia fazer uma atividade de competição assim, assim e assim", aí com isso a gente amplia mais o tempo com esse projeto... por exemplo, como agora, como no ano passado a professora... não sei se foi a professora de Ciências, foi no planejamento que surgiu... de montar uma caixinha de dúvidas sobre sexualidade. E dali surgiram fóruns de debate, esse ano a gente já vai colocar na grade uma disciplina de fórum de debate com dois tempos para cada turma, entendeu? E vai surgindo da vivência da escola. Cada um vem propondo uma coisa (Thaís Esteves, Diretora Geral)


O contexto apresentado pelo cotidiano da escola serviu como espaçotempo de produção de políticas educacionais, pois as/os professoras/es e diretores, em suas práticas, foram construindo, tecendo o currículo e se formando. Essas práticas formativas foram potentes na ampliação do conhecimento e tornaram os envolvidos praticantes, protagonistas dessa produção (FERRAÇO, 2013).


Reunindo cacos...


Uma forma de refletir sobre o nosso fazer acontece quando falamos de experiências que são, para nós, formadoras. Quando fazemos isso, estamos nos expondo, falamos de nós mesmos, de nossa história pessoal e de nossas interações socioculturais. Viver uma experiência formadora exige profundidade e uma articulação consciente e elaborada entre o fazer, o sentir e o pensar, resultando, assim, em uma representação e uma competência (JOSSO, 2010).

Narrar uma experiência formadora é um pouco contar para si mesmo a própria história, nesse sentido, é um caminhar para si em busca do que somos, do que pensamos, do que valorizamos e de como nos relacionamos com os outros e com o mundo. Dessa forma, algumas vivências ganham intensidade particular e assumem o estatuto de experiência ao mesmo tempo em que refletimos sobre o que se passou. Assim, foi se construindo um novo paradigma da prática das histórias de vida em formação, uma tendência a construir uma consciência reunificada de nós mesmos que é partilhada com outros. A construção formativa é levada a termo durante o fazer diário com os outros envolvidos, essas partes que são inseparáveis, envolvidos e os seus objetos de reflexão, ambos enriquecem mutuamente ao longo do trabalho (JOSSO, 2010).

A experiência formadora é capaz, também, de transformar o comportamento, a afetividade e a maneira de entender os acontecimentos. Escrever, tomando como base as narrativas das histórias de vida e formação da professores da Escola Municipal Antinéia Silveira Miranda, situa-se na tentativa de organizar o conjunto de experiências numa história, para melhor entender os diferentes componentes da sua formação. A atividade de pesquisa contribui, então, para a formação dos participantes no plano das aprendizagens reflexivas e interpretativas que tomam lugar no percurso da vida de cada um dos participantes desse processo (JOSSO, 2010).

O desafio de aprender a transitar entre o papel de pesquisadora e professora parte integrante da pesquisa, possibilitou estar em um lugar privilegiado de formação, para todos os envolvidos. Por isso, considero pertinente circunscrever este trabalho como uma pesquisaformação. A experiência de ser pesquisador-pesquisado não foi fácil, ao contrário, apresentou o desafio de desconstruir, de rever e de construir novos saberes acerca de nós mesmos e da nossa formação (PERRELI et al., 2013).

A breve discussão apresentada buscou indicar a possibilidade, através da narrativa e do registro da memória dos atores envolvidos no processo que se desenvolve no interior do ambiente escolar, de produzir saberes científicos academicamente reconhecidos.


Na perspectiva teórico-metodológica adotada, a implantação dos núcleos de memória nas escolas busca potencializar a articulação das dimensões simbólicas e materiais, em que o levantamento das fontes documentais é atravessado pelas vozes dos sujeitos que, no tempo presente, vivem o cotidiano da escola e suas tensões. [...] na construção de espaços onde as experiências de produção da vida, da prática educativa e da escola sejam reconstruídas por meio de narrativas, gerando novos saberes e formação (BRAGANÇA, 2014, p. 131).


Inventariando o processo de municipalização da E. M. Antinéia Silveira Miranda, a composição da equipe de trabalho e os compromissos firmados coletivamente, foi possível buscar lampejos do que foi vivido e constantemente reinventado por um grupo que modifica suas práticas em busca de fazer diferença nas vidas dos alunos da comunidade na qual está inserido.


Construindo com cacos...


Parte 1: Quebrando o gelo em cacos...


Solicitei a cada uma das professoras que elaborassem uma apresentação pessoal por escrito. Como todas estavam familiarizadas com meu texto, dei como exemplo o meu memorial, mas deixei em aberto a forma para a realização, limitei apenas o texto a dois parágrafos. Não houve resistência na realização do pequeno memorial por parte das participantes. Todas buscaram e encontraram um espaço em suas agendas lotadas de compromissos para a elaboração de suas apresentações.

Essa é uma pesquisa qualitativa que busca interpretar os elementos presentes nas narrativas, procurando, assim, compreender a realidade humana vivida através de seus diversos significados, crenças, valores, motivos e atitudes em um nível profundo das relações, processos e fenômenos. Diz respeito à procura por representar os sujeitos e suas subjetividades (FONTOURA, 2011).

Trilhar o percurso proposto para produzir um estudo com base em narrativas de experiências formadoras exigiu investir em uma metodologia, que foi sendo delineada nas reuniões de orientação coletiva e também no Grupo Polifonia.

A primeira etapa do trabalho consistiu na elaboração de um roteiro semiestruturado para a entrevistaconversa, a utilização da palavra mesclada, tem por intenção traduzir a ideia da conversa “com” o outro como um momento de troca, de partilha. Esse processo de estar com outro é uma forma potente de conversa, no qual se revelam pensamentos em comum ou


divergentes, contendo múltiplos sentidos que esclarecem e aprofundam o entendimento. Não faz parte desse contexto, o uso da língua neutra, moralizante, que não possui ninguém e nada dentro dela, usada nos discursos técnico-científicos. É uma busca pela conversa sem a intenção de rebaixar, sem diminuir o outro. Permitindo uma relação horizontal que dê aos participantes o mesmo tamanho, a mesma altura e importância (LARROSA, 2016).

Foi parte desta etapa a elaboração de um pequeno resumo contendo o objetivo do projeto para que os participantes tomassem contato com o trabalho proposto; um contrato de trabalho pedagógico-acadêmico, esclarecendo a maneira como utilizaremos as narrativas e a permissão para a utilização da mesma, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Convidei para entrevistaconversa uma professora regente das turmas de 3º e 4º ciclos e as duas diretoras (geral e adjunta). A definição das participantes teve como intenção conversar com pessoas que estavam atuando na escola desde a municipalização. Como fui e sou parte integrante dessa coletividade no espaço e tempo delimitado e, assim, também sujeito da pesquisa, pretendi participar do processo em igualdade de condições. Para isso, uma das participantes, escolhida por possibilidade de agenda, realizou a entrevistaconversa comigo, no mesmo espaço físico e sob as mesmas condições. Entendi que seria muito importante incluir a minha versão oral, da mesma forma que as demais participantes, por considerar que a versão escrita daria espaço ao aperfeiçoamento e ajustes que não foram oportunizados as outras participantes em um primeiro momento. Uso ainda, como fonte, a minha memória e meu diário de itinerância iniciado quando comecei a escrever sobre o tema (BARBIER, 2002).

Iniciei cada um dos encontros introduzindo o tema e os princípios do trabalho. Também foram apresentados o Contrato de Trabalho Pedagógico-Acadêmico e o TCLE. Objetos de significado muito pessoal relacionados a momentos importantes da minha trajetória profissional foram expostos às convidadas, como dispositivos disparadores da conversa. Levei o anel que ganhei de uma prima, também professora, quando me formei no Curso Normal – o referido anel ela ganhou na sua formatura do Curso Normal. Também mostrei o jornal da cidade de Niterói do dia 21 de outubro de 1999, data da divulgação da lista de aprovados no concurso para a rede municipal de Niterói. Eu tive o imenso prazer de encontrar o meu nome na lista divulgada no jornal. E, por fim, espalhei sobre a mesa fotos dos alunos da escola, em diferentes atividades, ao longo dos anos nos quais estamos aqui trabalhando com eles.

As entrevistasconversa aconteceram na Escola Antinéia Silveira Miranda, em vários momentos diferentes, sempre em acordo com a agenda das participantes. Assim, no transcorrer das aulas no mês de julho e durante o recesso escolar desse mesmo mês, e ainda em agosto 2017 e janeiro de 2018 realizamos as conversas. Os encontros com as convidadas foram gravados e


após a sua realização, os áudios foram transcritos e entregues aos participantes para que introduzissem observações, aprofundassem questões, ou mesmo retirassem algo que avaliassem necessário. Esse foi um momento de esclarecer pontos que não ficaram claros no primeiro contato e, a oportunidade para novas narrativas e ensaios de uma hermenêutica partilhada (FONTOURA, 2011).

O estudo das narrativas foi realizado por meio da tematização, tomando como inspiração a proposta de trabalho apresentada por Fontoura (2011) e Franco (2008). Dessa forma, assumimos a intenção de desvendar novos aspectos entre o narrador e o autor/pesquisador, em um processo de permanente construção, baseada na criatividade e na inovação, elementos importantes para uma epistemologia qualitativa.

As entrevistasconversa transcritas foram dispostas em uma tabela com duas colunas. Na primeira coluna, os temas relacionados aos objetivos propostos pela pesquisa e que estão presentes no roteiro semiestruturado usado no encontro, foram sendo identificados nos trechos da transcrição. Na segunda coluna dispomos a íntegra das entrevistas. Os temas usados na análise inicial da narrativa foram: narrativas de formação, experiência na E.M.A.S.M., implementação da jornada ampliada, relações pedagógicas e sociais, os processos formativos e reflexões. Na escuta e transcrição, foram observadas comunicações não verbais e pontos que se repetem. Nesse sentido, é importante destacar que os temas iniciais foram tomados como ponto de partida, deixando abertura para os que emergiram das narrativas.

Em um segundo momento de estudo, as narrativas de todas as participantes foram colocadas lado a lado em tabelas separadas em acordo com os temas identificados. As falas das convidadas foram postas assim, lado a lado, em um diálogo horizontal com o intuito de permitir entrelaçar o conteúdo das quatro entrevistaconversa.

Entendo que as histórias de vida, produzidas nas narrativas, contam as histórias dos indivíduos, ou mesmo de grupos que se constroem no interior de uma sociedade. Os sujeitos, nesse contexto, são entendidos como espaço de enunciação, em que os elementos da narrativa vão surgindo a medida em que essa se relaciona com o seu contexto. Marinas (2014) chamam esse modo descrito de entender a narrativa de compreensão cênica e afirmam que a origem e o sentido profundo das narrativas é construído ao longo da enunciação, com a participação daquele que escuta. A compreensão cênica nos leva a perceber que a história narrada não é linear ou mesmo acumulativa, mas consiste em um repertório de cenas. Marinas (2014) identifica nas cenas três grandes momentos: a cena da enunciação, as múltiplas cenas do cotidiano, as cenas reprimidas, ou implícitas. O autor ainda insere dois elementos de grande potência operativa à compreensão cênica: a escuta atenta, que deve ser capaz de suscitar o


relato, velar para que a palavra não cristalize, e, a palavra dada, aquela que tem valor moral, que é concedida e que deve garantir o circuito do narrar, ou seja, a palavra que foi cedida é livre e aquele que a dá não pode impedir o processo de apropriação dela advindo (ABRAHÃO, 2014).


Parte 2: Cacos do cotidiano...


Apresento a seguir, dois dos temas destacados: o processo de implementação da carga horária ampliada e o processo formativo. Perceber como cada uma de nós experienciou a implementação da carga horária ampliada e o que entendemos por processo formativo, nos aponta para as implicações que esse entendimento trouxe para o desenvolvimento do trabalho.



The ways of understanding the formative process may vary, but the search for formation is common to all. Some understand that the formative process occurs in the act of doing, throughout the work process; others seek academic training to deepen their formative process; there is also the understanding that relationships with others and with students promote formation.


I learn all the time with my students, with my colleagues. Sometimes we learn by assimilation or by denial. You look and see, "No, I never want to do this again in my life", but I think that we learn all the time. When you prepare a class and you teach it and you see that it didn't work. Then you have to think of another way. This is to form oneself. This is building yourself as a professional. And the teacher must, and I try to do this all the time. Go back, start over, rebuild. And as I said. There are no ready-made formulas. Ready- made formulas don't work. They work at a certain moment for a specific group. But for another it doesn't work. So this constant construction in the classroom is formative. It makes us rebuild ourselves, improve what we are doing (Dayse).


We always talk with everyone. We interact with all the professionals. So, this is also something that I think is very positive. This moment of discussion, how we dealt with the difficulties we had. How we planned many cool things. I had the opportunity to work with other professionals, partnerships with other professionals that I had never done before in another school. I always did jobs, activities with Joana, with Fabiana. So, this issue of us working together more, interacting more, and the professionals being more united, not having so much that separation. Each one goes to their own room, does their own work, is also something that impressed me a lot. So I think it is very positive (Denise).


I don't know specifically for training, because we can't have study meetings here. Of theoretical study. But we do have case study meetings, because from


the moment the teacher brings to the planning the reality of the class, of the student, or from outside the school, many of them also bring good examples, positive examples for us to put into practice. We don't hold theoretical study meetings, we hold case study meetings. I learn a lot, but I learn in planning meetings in a more practical way, not theoretically. I see it this way, there is little time, only two hours, so there are many teachers, 11 subjects, I have many teachers, so they focus on the issues that happened during the week or month that need to be solved, that need to be solved, that need to be thought about, that need to be changed so that the reality can improve in the school, so that the reality can change for that student. So I see the meeting as a much more practical meeting, because there we present the situation, think of possibilities and say what we are going to do, put them into practice so that in the next meeting we can... two meetings later we can see if it has worked. Unfortunately, we still haven't been able to have study meetings, there were few of them, when we had them, it was because the training of the outside foundation, and I think some of them were not very productive, but the daily planning meetings are more like case studies, with suggestions for actions. Sometimes it didn't even happen in that teacher's class, but he would say, "Well, this didn't happen to me, but if we acted like this? If we acted like this? I learn with this, I learn with their practice, with the possibilities of practices, of suggestions of practices, we put them into action and see the results. That is what I see (Thais).


But it was very important to have been part of the FFP master's program. That was a redemption in my life, for the moment I was living in my life and the way I was welcomed by those people. Impressive, impressive. By the class, even by the professors themselves. By each one of them that did everything to make you feel good. And more importantly, it is that there is not that demigod speech, because in graduate school, let's agree... It's hard. And they are people who are very aware of their difficulties, their limitations, their impossibilities, their work, their family... But they are there to make the public school a better place. I think that today I am also better because of what I experienced there. This is a fact. It was very important in my life (Lucia)


Part 3: Hidden under the rug...


Reflecting on all the issues that are often well kept within us made me think about the need we have to narrate what happens to us, so that we can give meaning to our experiences.

Hearing from others about what kind of teacher we want to be, what relationships we seek to establish with our students, made me think about how I develop my work. I could identify in each one of us the incessant search for ways and means to help us and qualify us for our daily practice. The conversations about our histories brought us closer and allowed us to share desires, dreams...

The need to conquer material conditions, both as individuals and as a school, that allow us to work in better conditions, accessing the resources we want, was implicitly present in our conversations.


Another underlying issue concerns the fragility of maintaining the school's full-time schedule. We realize that the adoption or not of the full time is linked to party political interests and not to the interests of the community in which the school is inserted. In the same way, we are not consulted, or listened to, leading to total ignorance on the part of the managing institution of what we do, or how we do it. While we are thus in the mists, forgotten and misty, we build with the freedom that we have.

In this sense, we find the research training as a powerful field that values listening and gives space so that new versions of oneself can be built, while we narrate. The closeness between those involved in the process produces dynamic knowledge with transformative potential. This experience lived in the research is capable of raising the awareness of each of the participants in a very intense way, favoring reflection on their life stories as a learning, knowledge process. It can also result in the awareness of the experiences lived as a teacher and the appreciation of the knowledge built over time. The research thus provokes the reflection of all involved, which is succeeded by the formation, in the same way, of everyone.


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How to reference this article


FONTENELLE, D. G.; BRAGANÇA, I. F. S. Narrative of the itineraries of a research training: the extended hours project at the Municipal School Antinéia Silveira Miranda. Rev. @mbienteeducação, São Paulo, v. 14, n. 3, p. 662-682, Sep./Dec. 2021. e-ISSN: 1982-8632. DOI: https://doi.org/10.26843/v14.n3.2021.1116. p662-682


Submitted: 04/08/2021 Required revisions: 13/10/2021 Approved: 14/11/2021 Published: 16/12/2021


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